domingo, janeiro 05, 2003
Ser famoso
Alice Vieira , escritora
Senhores da produção, espero que ao receberem estas minhas humildes linhas estejam todos de saúde, que eu bem, felizmente. Quer dizer, bem, bem não estou, pois há que tempos que mando cartas, e me inscrevo para tudo, e vou para a porta dos estúdios e nada. Eu até nem quero muito. Não me interessa ganhar essa coisa do elo não sei quantos, eu até nem sei o que é elo, mas prontos, deve ser coisa importante porque eles têm todos o ar de estarem muito zangados. O que eu queria era muito mais simples e, ao que oiço, é uma coisa que toda a gente quer agora, e muita gente já conseguiu: eu quero ser famoso. Ser conhecido. Ir na rua e uma data de velhinhas agarrarem-se a mim aos beijos e pedirem-me autógrafos (ainda assino mal o meu nome, mas o meu vizinho está-me a dar umas lições, dentro de dias fico fixe), e dizerem que gostam muito de mim, e pessoas a telefonarem para eu ganhar concursos. Ser conhecido é o meu sonho, o meu maior desejo, toda a minha ambição (claro que também desejo a paz no Mundo e o fim de todas as guerras). Já tive alturas na minha vida em que desejei outras coisas, sei lá, um emprego melhor, esforçar-me mais em trabalhos de que gostava, aprender coisas novas, tentar fazer andar para a frente esta coisa em que vivemos e que nunca mais se endireita, acreditem que cheguei a ter sonhos desses, mas caramba!, o trabalho que davam e o pouco que a gente ganhava com isso! Agora, felizmente, e graças aos vossos programas, que vejo sempre e de que gosto muito e queria aproveitar para desejar um bom ano a vocês todos, agora ganhei juízo e percebi que, antes dessas porcarias todas, o que a gente tem de ser é famoso, conhecido, aparecer em todas as revistas, de preferência na capa, mas também pode ser lá dentro se for ao lado, sei lá, do sr. China, por exemplo, que eu nem sei quem seja mas aparece muitas vezes ao lado do Figo, e os amigos do Figo meus amigos são, e se ele puder também ficar na foto, melhor. Depois queria também aparecer no programa do Herman, até pode ser ao lado do Zé Cabra, e ter uma coluna assinada numa revista, e escrever um livro (o meu vizinho, que é um santo, há-de continuar a ajudar-me) que se há-de vender que nem ginjas, porque toda a gente sabe que os portugueses lêem que se fartam, só não lêem os livros chatos dos escritores mesmo, mas esses publicam coisas intragáveis, nem o meu vizinho as percebe, e quando vão na rua ninguém os conhece, nem lhes dá beijinhos nem nada. E eu quero é ser conhecido, muito conhecido, ser sobrinho de todas as tias ? mas se a produção me conseguir encontrar outras para lá da Cinha e da Lili Caneças, eu agradecia, que essas, a bem dizer, já começam a ter sobrinhos a mais para o meu gosto. Como não faço nada, nem nunca fiz nada que se visse, acho que estou em óptimas condições para me tornar muito conhecido e muito famoso. De certeza que estou em muito melhores condições do que um velhote que apareceu outro dia numa reportagem da televisão, apanhado ao calhas numa bicha a trocar os últimos escudos, a dizer à repórter "eu sou jornalista há 50 anos!", e ela nem uma nem duas, e lá na televisão ninguém soube dizer o nome do velhote, e o meu pai aos berros, "é o Aurélio Márcio, olha o Aurélio Márcio", mas a reportagem lá acabou e ninguém ficou a saber quem era o velhote, e não devia ser ninguém, ninguém conhecido, quero eu dizer, o meu pai é que se deve ter passado, coisas da idade, não façam caso ? e por favor atendam o meu pedido. Boas festas.
salamandrine 11:46
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